sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A quem serve a luta cotidiana?

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 “Não deixe portas entreabertas
Escancare-as ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas
Passam apenas semiventos,
Meias verdades e muita insensatez”.

Cecília Meireles

Não gosto das pessoas sorrateiras, dos mornos, dos natimortos. Nunca gostei da vida entreaberta; quero adentrá-la de frente, erguida pois é assim se recebe o abraço ou se leva a bofetada;  com os olhos fitos no outro, na pessoa.  Olhos dispostos a enfrentar com dignidade a lágrima e o sorriso. Ficar a esgueira...  não, definitivamente.  Um manifesto contra aqueles que se arrastam por entre as bordas da vida, covardes, biltres, abutres a escarnecer da intrepidez alheia. 
Portas entreabertas me incomodam. Tenho poucas, duas ou três que teimam em ranger, cismam em incomodar para que eu as feche, ou as abra de vez. Portas como fantasmas que gritam, uivam, rugem, arranham minha cabeça em flagelo contínuo. Eis-me então para cerrar ou escancarar uma delas: a do silêncio. Descerro meu decreto à palavra, ao que me constitui desde as entranhas, meu bálsamo e cianureto. Recorro às palavras, atiro-me a elas tal qual Ismália ruflando asas de par em par com alma subindo ao céu e corpo atirado ao mar.
Meu romance com a palavra surgiu cedo, quando minha mãe me levava ainda com três anos de idade aos comícios do “Beija-flor” na cidade de Santo Antônio de Jesus, Bahia. Não sei ou posso precisar se eram partidos, alas ou sei lá o quê. A cidade dividia-se em Beija-flor – com bandeiras de cor vermelha, azul e branca-, e Jacú – com bandeiras de cor amarela e preta, salvo engano. Os comícios eram feitos em cima de caminhões improvisados e devidamente preparados para fuga, pois a polícia era rápida em desbaratar as aglomerações a tiros e pancadarias. Recordo das primeiras escapadas das quais participei... um senhor que para mim era simplesmente o tio Renato (ex-prefeito e ex-deputado Renato Machado, in memorian) falava a uma multidão que o aplaudia efusivamente depositando nele fé e esperança. Eu nem sabia ainda o que seriam estes sentimentos, porém, achava muito estranho ver pessoas se atirando à frente da polícia para proteger nosso caminhão. E lá íamos nós... a policia com tiros e pancadaria, as pessoas com paus e pedras, os caminhões a bater em retirada e minha mãe e tio Renato empunhando apenas microfones tal qual varas encantadas a banhar de coragem a multidão.
Assim eu fui crescendo e a palavra se entranhando em minha pele, por meus poros, em cada gota de sangue...  Lembro-me da primeira palavra aprendida: folha. Ei-la. Soletrava aos quatro cantos e perguntava a todos: você sabe escrever folha? F-O-L-H-A, FOLHA. Este foi meu primeiro decreto. Não por acaso... folha me remete a folio, ao papel em branco à espera das palavras. E assim fui aprendendo do seu manejo, do seu corte, do seu talhe, da sua substância. Com as palavras descobri o seu enorme poder para transformar o mundo e as pessoas ao meu redor. Me lasquei! Assim mesmo, em bom dito nordestino. Me lasquei! Vieram o Grêmio estudantil, a UJS, os movimentos sócias, o DA, o DCE, o Comunismo, o PCdoB e tantos outros lugares nos quais transformamos o mundo por meio do verbo aliado à ação. Qual a justificativa de todo este intróito?! As memórias me têm tomado de assalto, pois quando somos forjados na luta cotidiana aprendemos que o medo e o silêncio são artigos de luxo. Descobrimos que se faz necessário perguntar sempre: a quem serve? Esta pergunta crucial, aprendi aos dezoito anos com uma das pessoas mais dignas e admiráveis da política baiana a camarada Alice Portugal de quem eu me orgulho de possuir o DNA político. A quem serve? A pergunta que me ronda a cabeça, me tira o sono e incomoda. Este questionamento precisa nos acompanhar sempre e a ele devemos recorrer, sobretudo, nos momentos relevantes nos quais os fatos possuem importância social. Se não descobrirmos A quem serve, seguramente descobriremos A quem não serve argumento suficiente para nos conduzir à ação ou reação. Este exercício eu o ratifico hoje, me desculpem os donos dos olhares insatisfeitos, dos brios incomodados. De agora por diante os perquirirei sempre que necessário e o farei com os instrumentos dos quais disponho ou criarei novos quando preciso.
 Chega dos sapos entalados na garganta. Alguns sapos não devem ser engolidos para não nos matar envenenados. Alguns sapos enormes e gordos ficam entalados na garganta e nada os digere ou faz descer. Nestes casos o melhor é regurgitá-los. Sapos embebidos em vômitos e lançados ao ar. Nada muito diferente da matéria fecal na qual freqüentemente se banham. Sapos, penicos, fezes ao ar... um carnaval de perguntas e uma chuva de respostas mal cheirosas mas tudo acabado lavaremos o recinto com água sanitária, desinfetante e limparemos o quarto, a sala, a casa toda. Então faremos nosso manifesto à assepsia, nosso decreto de liberdade ou coisa similar.  Até lá procurarei descobrir a quem servem as tantas coisas que teimam em me incomodar.
Talvez o arroubo juvenil, vício e resquício da UJS, tenha-me feito escrever estas mal digitadas linhas. Para alguns, impertinentes, para outros, nem tanto, para mim necessárias. Pronto, está feito. Eis meu decreto à palavra, o texto inaugural do blog e meu grito de liberdade. Seguirei sem portas entreabertas, vãos, brechas, fendas, semiventos ou semi-silêncio.

Um comentário:

  1. Que bom que a arte e a literatura que te entranham as veias, o sangue e o seu próprio pulsar resurgiram , que a gênese da própria Lilhite nunca mais se perca de você. Amo-te sempre e quero sua felicidade!Oya te cubra de mansidão e liberdade!!!!Hoje foi o nosso bater de portas como diria Cecília,nada mais resta do que os semiventos e a louca insensatez dessse instante fulgaz!

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